#!/intro
A criptografia homomórfica é uma técnica criptográfica que permite realizar cálculos diretamente sobre dados cifrados, sem nunca ser necessário decifrá-los. Esta característica desafia o modelo tradicional de segurança da informação, no qual os dados devem ser previamente decifrados para serem processados, expondo-os temporariamente a riscos de fuga ou manipulação.
Este paradigma tem implicações profundas para a segurança digital, especialmente em contextos em que a privacidade é crítica. Ao eliminar a necessidade de confiar no ambiente de processamento, a criptografia homomórfica introduz um novo nível de separação entre o operador do sistema e os dados manipulados.
Esta técnica revolucionária abre possibilidades para novos modelos de privacidade e segurança, especialmente em contextos como computação na nuvem, análise de dados sensíveis e inteligência artificial.
> homomorfismo
Em álgebra abstrata, um homomorfismo é uma aplicação entre duas estruturas algébricas que preserva as operações definidas nessas estruturas.
Formalmente, sejam (A,∗) e (B,∘) dois conjuntos com operações binárias respetivas.
Uma função f:A→B é um homomorfismo se, para todos os elementos x,y ∈ A , for satisfeita a seguinte condição:
f(x∗y) = f(x)∘f(y)
Esta propriedade garante que a estrutura da operação é conservada pela função, ou seja, aplicar a operação em A e depois transformar o resultado através de f produz o mesmo valor que transformar os operandos e depois aplicar a operação no contradomínio. Na prática, significa que se realizarmos uma operação entre dois elementos e depois aplicarmos o homomorfismo ao resultado, obtemos o mesmo valor que se aplicarmos o homomorfismo a cada elemento separadamente e depois efetuarmos a operação no novo conjunto.
Este conceito é central em muitas áreas da matemática e da ciência computacional, na medida em que permite estudar a forma como estruturas se mantêm sob transformações. Quando uma função é homomórfica, torna-se possível transferir certas propriedades e operações de um domínio para outro, sem perda de coerência estrutural.
Esta propriedade de preservação algébrica é a base conceptual daquilo a que se chama criptografia homomórfica. Ao considerar a cifra como uma função entre espaços algébricos, pretende-se que seja possível realizar operações úteis sobre os dados cifrados de forma compatível com operações no conteúdo original, sem que seja necessário aceder ao mesmo.
> criptografia
Com base na noção de homomorfismo, é possível conceber sistemas criptográficos que permitam realizar operações diretamente sobre textos cifrados, de forma tal que o resultado da operação, uma vez decifrado, corresponda exatamente ao que se obteria aplicando essa mesma operação aos dados originais. Este tipo de sistema é designado por criptografia homomórfica.
Considere-se uma função de cifra E e duas mensagens m1 e m2 no espaço do texto. Dizemos que a cifra é homomórfica em relação a uma operação ⊕ se existir uma operação correspondente ∘ no espaço cifrado tal que:
E(m1 ⊕ m2) = E(m1) ∘ E(m2)
Esta relação traduz a ideia de que a função de cifra preserva a operação, tal como um homomorfismo entre estruturas algébricas.
Na prática, esta propriedade permite delegar a computação de dados sensíveis a terceiros, sem nunca lhes conceder acesso ao conteúdo. Por exemplo, é possível cifrar uma base de dados, enviá-la para um servidor externo, realizar operações sobre os dados cifrados e obter o resultado final já cifrado. Apenas o detentor da chave de decifra poderá aceder ao conteúdo do resultado.
Os esquemas de criptografia homomórfica podem ser classificados em três categorias principais, consoante o conjunto de operações que permitem efetuar sobre os dados cifrados: parcialmente homomórficos, homomórficos limitados e totalmente homomórficos.
Um esquema é dito parcialmente homomórfico quando preserva apenas uma operação algébrica, tipicamente a adição ou a multiplicação. Embora restritos em termos funcionais, estes esquemas mantêm a confidencialidade dos dados durante o processamento de uma operação específica, sendo adequados a contextos com requisitos computacionais simples e bem definidos.
Um esquema homomórfico limitado permite realizar tanto adições como multiplicações, mas apenas até uma certa profundidade de cálculo. Esta limitação decorre do aumento progressivo do ruído introduzido por cada operação, o qual compromete a capacidade de decifrar caso se ultrapasse um determinado limiar. Assim, o número de operações consecutivas suportadas é tecnicamente finito e controlado.
Por fim, um esquema é considerado totalmente homomórfico (Fully Homomorphic Encryption – FHE) quando possibilita a execução de operações arbitrárias sobre os dados cifrados, sem restrições funcionais. Esta classe de esquemas permite avaliar qualquer circuito computacional, mantendo os dados permanentemente cifrados, o que representa o modelo ideal de processamento seguro em ambientes não confiáveis.
A construção do primeiro esquema de cifra totalmente homomórfica foi apresentada por Craig Gentry em 2009. A sua abordagem baseia-se em estruturas reticulares e permite realizar adições e multiplicações sobre dados cifrados, tornando possível efetuar cálculos arbitrários sem acesso aos dados em claro. Recorre a uma técnica denominada bootstrapping, que permite decifrar e recifrar homomorficamente os dados, controlando o ruído acumulado pelas operações sucessivas.
Desde então, têm sido desenvolvidas diversas otimizações e variantes que visam reduzir a complexidade computacional e tornar viável a aplicação da criptografia homomórfica em contextos práticos. Entre as abordagens mais relevantes destacam-se os esquemas BGV (Brakerski–Gentry–Vaikuntanathan) e BFV (Brakerski–Fan–Vercauteren), que introduzem melhorias significativas na gestão do ruído e são particularmente eficazes em operações aritméticas sobre números inteiros. O esquema CKKS (Cheon–Kim–Kim–Song) permite o processamento aproximado de números reais, sendo especialmente útil em cenários de aprendizagem automática e análise de dados.
Para além destes, têm sido desenvolvidas otimizações ao nível da representação dos dados, como as técnicas de batching e packing, que permitem executar múltiplas operações em paralelo, aumentando a eficiência. O desenvolvimento de bibliotecas especializadas, como a Microsoft SEAL, a OpenFHE ou a HElib, tem igualmente contribuído para a adoção prática desta tecnologia, ao integrar mecanismos de otimização e facilitar a sua aplicação em sistemas reais.
> aplicacoes
A criptografia homomórfica tem vindo a afirmar-se como uma solução particularmente relevante em cenários onde a confidencialidade dos dados deve ser preservada não apenas durante o armazenamento ou a transmissão, mas também durante o processamento. O seu potencial é especialmente evidente em contextos onde os dados são sensíveis e o ambiente de execução não é plenamente confiável.
Um dos casos mais significativos é o da computação em nuvem. Ao permitir que dados cifrados sejam processados diretamente por servidores externos, torna-se possível delegar tarefas computacionais a plataformas de terceiros sem comprometer a privacidade da informação. O utilizador pode cifrar os dados localmente, enviá-los para processamento e receber de volta um resultado igualmente cifrado, que só ele poderá decifrar. Esta abordagem elimina a necessidade de confiar no prestador do serviço, uma vez que este nunca acede ao conteúdo dos dados.
Outro domínio com grande potencial é o da saúde digital. Instituições hospitalares ou de investigação biomédica podem partilhar bases de dados cifradas entre si, realizar análises estatísticas ou aplicar modelos de previsão, tudo sem expor informação clínica identificável. A preservação da privacidade do paciente, exigida por normas como o RGPD, é assim garantida a nível técnico, e não apenas contratual ou organizacional.
Na área financeira e contabilistica, a criptografia homomórfica pode permitir a externalização de cálculos sobre folhas de pagamento, auditorias automatizadas ou análises de risco, mantendo os dados corporativos sempre protegidos. É possível executar operações aritméticas e lógicas sem revelar valores numéricos, identidades de clientes ou condições contratuais.
A aplicação desta tecnologia estende-se também à inteligência artificial, nomeadamente ao treino e inferência de modelos de aprendizagem automática sobre dados cifrados. Isto permite, por exemplo, que um sistema de recomendação personalizado funcione sobre dados do utilizador sem que esses dados sejam alguma vez revelados ao fornecedor do serviço.
Por fim, destaca-se o interesse crescente em sistemas de voto eletrónico que podem utilizar criptografia homomórfica para assegurar que os votos são corretamente contados, sem que o seu conteúdo seja exposto durante o processo de contagem. Este tipo de solução aumenta a transparência e confiança nos sistemas eleitorais digitais, ao mesmo tempo que protege a integridade dos votos e o anonimato dos eleitores.
Em todos estes contextos, a grande mais-valia da criptografia homomórfica está na dissociação entre utilidade e acesso. Os dados tornam-se computacionalmente operáveis sem que sejam logicamente acessíveis, o que representa uma mudança profunda no paradigma tradicional de segurança e privacidade da informação.
> desafios
Apesar do seu enorme potencial, a criptografia homomórfica enfrenta ainda vários obstáculos que limitam a sua adoção generalizada. O mais evidente é o custo computacional associado às operações sobre dados cifrados. Em comparação com operações equivalentes em dados não cifrados, os cálculos homomórficos requerem ordens de grandeza superiores em tempo de execução e consumo de recursos. Este impacto no desempenho torna-se particularmente relevante em aplicações com grandes volumes de dados ou com exigência de resposta em tempo real.
Outro desafio prende-se com a complexidade matemática subjacente aos esquemas homomórficos mais avançados. A implementação prática destas técnicas exige conhecimentos especializados em áreas como teoria dos números, álgebra linear, estruturas reticulares e criptografia avançada. Esta barreira técnica dificulta a integração da criptografia homomórfica em soluções comerciais e obriga ao uso de bibliotecas altamente especializadas, muitas das quais ainda se encontram em fase de maturação.
Um terceiro aspeto crítico é a gestão do ruído criptográfico. Na maioria dos esquemas homomórficos, cada operação realizada sobre dados cifrados introduz um certo nível de ruído que se acumula progressivamente. Quando este ruído ultrapassa um determinado limiar, torna-se impossível recuperar o resultado correto após a decifra.
A dimensão dos dados cifrados constitui igualmente uma limitação importante. Estes, em muitos casos, podem ocupar várias ordens de grandeza mais espaço do que os dados originais. Esta expansão tem implicações práticas ao nível do armazenamento, da largura de banda necessária para a transmissão e da capacidade de memória dos sistemas envolvidos.
Para além destas questões técnicas, subsistem também desafios ao nível da normalização e da interoperabilidade. Ainda não existe um padrão universalmente aceite para a utilização de criptografia homomórfica, o que dificulta a sua adoção coordenada entre diferentes plataformas e fornecedores. Paralelamente, surgem dúvidas legítimas sobre como esta tecnologia deve ser enquadrada em contextos legais e regulamentares, nomeadamente em matéria de responsabilidade, auditoria e validação de resultados.
Estes fatores explicam por que razão, apesar do entusiasmo académico e do interesse crescente da indústria, a criptografia homomórfica continua a ser usada sobretudo em ambientes controlados, como laboratórios de investigação, provas de conceito e sectores com requisitos de segurança extremamente elevados. A sua generalização dependerá de avanços significativos em eficiência, acessibilidade e integração com as práticas existentes de engenharia de software.
> conclusão
A criptografia homomórfica representa uma evolução significativa no domínio da segurança da informação. Ao permitir que dados permaneçam cifrados durante o seu processamento, esta abordagem redefine o equilíbrio tradicional entre funcionalidade e confidencialidade. Já não é necessário escolher entre proteger a informação e dela extrair valor; a computação sobre dados cifrados torna-se, em teoria, uma realidade viável.
Contudo, este avanço conceptual ainda não se traduziu numa aplicação generalizada. Os custos computacionais elevados, a complexidade dos esquemas algébricos e a falta de normalização prática impõem barreiras que não podem ser ignoradas. Embora existam implementações funcionais e bibliotecas cada vez mais acessíveis, a tecnologia permanece, por agora, limitada a nichos de utilização muito específicos, como a análise de dados médicos, os sistemas de voto eletrónico seguro ou a computação confidencial aplicada à aprendizagem automática.
Há também que reconhecer que a criptografia homomórfica não é uma solução universal. Em muitos casos, abordagens baseadas em ambientes de execução confiáveis, partição de dados, controlo de acessos e técnicas de privacidade diferencial oferecem soluções mais eficientes e suficientes do ponto de vista prático. A decisão de adotar um esquema homomórfico deve, por isso, resultar de uma análise cuidadosa do equilíbrio entre exigência de segurança, viabilidade técnica e custo operacional.
Ainda assim, os progressos dos últimos anos apontam para uma trajetória clara. À medida que os algoritmos se tornam mais eficientes, as bibliotecas mais estáveis e a comunidade mais experiente, é expectável que a criptografia homomórfica venha a ocupar um lugar relevante nas arquiteturas seguras do futuro. Num mundo onde a computação distribuída, a externalização de serviços e a análise automatizada de grandes volumes de dados são tendências irreversíveis, a capacidade de proteger a informação sem abdicar da sua utilidade será cada vez mais estratégica.
Apesar de ainda enfrentar desafios técnicos significativos, a criptografia homomórfica representa uma abordagem promissora para assegurar a confidencialidade dos dados durante o seu processamento.
> referencias
Gentry, C. (2009). Fully Homomorphic Encryption Using Ideal Lattices. In Proceedings of the 41st Annual ACM Symposium on Theory of Computing (STOC ’09), pp. 169–178. https://doi.org/10.1145/1536414.1536440
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Brakerski, Z. (2012). Fully Homomorphic Encryption without Modulus Switching from Classical GapSVP. In R. Safavi‑Naini & R. Canetti (eds.), Advances in Cryptology – CRYPTO 2012, Lecture Notes in Computer Science, vol. 7417, pp. 868–886. Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-642-32009-5_50
Fan, J., & Vercauteren, F. (2012). Somewhat Practical Fully Homomorphic Encryption. Cryptology ePrint Archive, Report 2012/144. https://eprint.iacr.org/2012/144
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OpenFHE Working Group. (2022‑). OpenFHE: Open‑Source Fully Homomorphic Encryption Library. NumFOCUS‑sponsored project. https://openfhe.org/
Shai Halevi & Victor Shoup (–). HElib: An Implementation of Homomorphic Encryption. GitHub repository. https://github.com/homenc/HElib
> status: experimental
> exit 0