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A ciência é um dos pilares centrais do progresso humano. Assenta em métodos rigorosos, na verificação empírica e na revisão pelos pares. Não oferece certezas finais, mas um processo permanente de interrogação e descoberta, que se vai corrigindo à medida que surgem novos dados e melhores explicações. Esta natureza dinâmica é uma das maiores forças da ciência, mas é também uma das características mais frequentemente deturpadas. A incerteza própria do método científico é explorada por vários atores que a utilizam como pretexto para lançar dúvidas generalizadas e alimentar desconfiança.

Vivemos num tempo em que a desinformação se propaga com uma facilidade inédita. Multiplicam-se os ataques à credibilidade do conhecimento científico, muitas vezes guiados por agendas ideológicas, interesses económicos ou estratégias políticas. A crítica legítima e necessária é substituída por campanhas de descrédito sistemático. Em vez de promover o debate informado, estas campanhas corroem a confiança pública na ciência e nas instituições que a produzem.

Nunca tivemos acesso a tanta informação. No entanto, cresce a incerteza sobre aquilo que é verdadeiro, sobre quem merece ser ouvido e sobre que critérios devem orientar o julgamento público. Não se trata apenas de ruído ou confusão. Trata-se de um processo de instrumentalização da ignorância que, ao fragilizar o valor do conhecimento e das instituições, abre espaço a tendências autoritárias, desestabiliza a democracia e agrava desigualdades já profundas. As implicações desta realidade são estruturais e tem consequências profundas para a forma como vivemos juntos em sociedade.


> obscurantismo

Assiste-se hoje a um movimento persistente de desvalorização, desconfiança e rejeição do conhecimento científico. Este obscurantismo não surge por acaso. É alimentado por interesses que encontram vantagem num espaço público fragmentado, onde todas as opiniões parecem equivalentes e onde a noção de verdade se torna negociável. Quando a confiança nas instituições, nos especialistas e na própria ideia de evidência é minada, o terreno fica preparado para a desinformação e para a degradação do debate democrático.

A desinformação não se limita à circulação de erros factuais. Atua de forma discreta mas constante. Procura enfraquecer a confiança na possibilidade de conhecer, na ideia de que existem critérios para distinguir análises sérias de manipulações. Sem um mínimo de acordo sobre factos verificáveis, a discussão pública reduz-se a confronto de histórias incompatíveis. Numa sociedade que já não reconhece qualquer referencial comum, torna-se mais simples manipular perceções, criar medo, explorar frustrações e acentuar divisões.

A iliteracia científica agrava este cenário. Muitos cidadãos não dispõem dos instrumentos básicos para compreender como funciona o método científico, avaliar a fiabilidade das fontes ou distinguir evidência de opinião. Esta fragilidade facilita a aceitação de explicações simplistas, certezas sem base sólida e teorias que oferecem respostas rápidas a problemas complexos. Sem um nível mínimo de literacia científica e mediática, torna-se difícil participar de forma informada na vida democrática ou reconhecer o valor do trabalho especializado.

A adesão a teorias da conspiração é um produto extremo desta dinâmica. À primeira vista, pode parecer um fenómeno marginal ou até inofensivo. Na prática, tem consequências profundas. Quando estas teorias se tornam parte do senso comum de certos grupos, reforçam a desconfiança em relação à ciência, aos meios de comunicação e às instituições democráticas. Quem as promove ou subscreve contribui, mesmo sem intenção, para o enfraquecimento do espaço público. A recusa em aceitar evidência sólida e procedimentos rigorosos aumenta a polarização e torna mais difícil construir consensos informados em temas como as alterações climáticas, a saúde pública ou a proteção de direitos fundamentais.

Num ambiente deste tipo, discursos populistas e projetos autoritários encontram terreno fértil. Não se impõem apenas pela força ou pela ameaça. Avançam também através da normalização da ignorância como marca de autenticidade popular, da desqualificação sistemática de especialistas e da suspeita permanente em relação a qualquer forma de conhecimento estruturado. Problemas complexos são reduzidos a frases simples. As causas profundas da desigualdade, da precariedade ou da exclusão são substituídas por bodes expiatórios. A crítica racional é trocada por indignação dirigida e cuidadosamente orientada.

Este padrão não é novo na história. Sempre que o avanço do conhecimento confrontou crenças enraizadas ou interesses estabelecidos, encontrou resistência. A controvérsia em torno da teoria da evolução é um exemplo prolongado dessa tensão. O mesmo se verifica hoje em debates sobre alterações climáticas, vacinação ou políticas de saúde pública. Em muitos destes casos, a rejeição de evidência robusta não resulta de dúvidas honestas, mas de campanhas organizadas que procuram proteger modelos de negócio, consolidar poder político ou preservar visões do mundo que se sentem ameaçadas.

O que distingue o presente é a escala e a velocidade da propagação da desinformação. Plataformas digitais e redes sociais amplificam conteúdos falsos ou enganosos a um ritmo com que as instituições, a escola e os meios de comunicação tradicionais dificilmente conseguem competir. Os algoritmos que comandam estas plataformas favorecem mensagens emotivas, polarizadoras e simples, em detrimento de explicações mais detalhadas e equilibradas. Formam-se grupos fechados de informação, em que as pessoas são expostas sobretudo a conteúdos que confirmam as suas crenças anteriores. Fóruns que negam as alterações climáticas, grupos antivacinação e espaços dedicados a teorias da conspiração funcionam como câmaras de eco que reforçam convicções, radicalizam posições e aprofundam a desconfiança em relação à ciência e à democracia.

À medida que o espaço público se fragmenta e a atenção coletiva se dispersa, certos grupos económicos e elites políticas alargam a sua margem de manobra. Aproveitam-se de uma sociedade mais dividida, mais exausta e com menor capacidade de escrutinar decisões complexas. Em muitos contextos, as últimas décadas trouxeram uma transferência significativa de riqueza e de poder das classes médias e trabalhadoras para uma minoria reduzida. A erosão da confiança na ciência, nos meios de comunicação e nas instituições democráticas, alimentada por este obscurantismo, é um instrumento central nesse processo. Ao enfraquecer a capacidade de resistência coletiva, torna mais fácil impor políticas que aprofundam desigualdades e transformar a democracia num ritual formal, com impacto cada vez mais limitado na distribuição efetiva do poder.


> conclusão

Defender o valor do conhecimento, da investigação rigorosa e do pensamento crítico é hoje uma necessidade política, não apenas académica. Em sociedades sujeitas a campanhas constantes de desinformação, a capacidade de deliberar em comum torna-se um bem frágil. Sem essa capacidade, a democracia transforma-se num cenário facilmente capturado por quem domina os canais de comunicação, as técnicas de manipulação e os recursos económicos.

Quando a desinformação e o obscurantismo triunfam, a democracia enfraquece. O autoritarismo deixa de ser um risco distante e passa a uma possibilidade concreta. A concentração de riqueza acelera-se. As desigualdades intensificam-se. Direitos que pareciam consolidados tornam-se reversíveis. Neste contexto, cultivar uma cidadania informada, exigente e crítica é uma condição de sobrevivência democrática. Não basta transmitir informação. É necessário desenvolver competências de análise, capacidade de dúvida bem orientada e hábitos de verificação.

Reforçar a confiança na ciência e no pensamento racional não significa transformar cientistas em novas autoridades infalíveis. Significa reconhecer o valor de procedimentos transparentes, de métodos sujeitos a escrutínio e de práticas que aceitam a possibilidade de erro e de revisão. Ignorar ou desvalorizar este trabalho é escolher a opacidade, a arbitrariedade e a submissão a quem tem meios para moldar o espaço informativo.

Num tempo marcado por desafios globais sérios, não podemos permitir que a instrumentalização da ignorância se torne uma estratégia vencedora. Um compromisso firme com o saber, com a discussão informada e com instituições que prestam contas é condição necessária para preservar a liberdade, reduzir desigualdades e construir sociedades mais justas e resilientes.

> status: vulnerable
> exit 0